Boaventura de Sousa Santos



           
Do pronunciamento de Boaventura de Sousa Santos, dia 8 de novembro de 2017, após ser agraciado com o título de doutor “honoris causa” da UFRGS.

Vivemos realmente um tempo muito incerto. Fundamentalmente porque é um momento de desimaginação do social. Estamos a desimaginar o social e desimaginar o social é ter um pensamento antissocial do social. É por exemplo, usar uma ideia de responsabilidade coletiva e substituí-la pela ideia de culpa.

É trocar a ideia de solidariedade pela ideia de individualismo; a ideia de cooperação pela ideia da competitividade ou de empreendedorismo. Palavras que são chave do discurso hegemônico que corre por aí. Isso é algo hoje que destrói de fato o cimento da sociedade, porque praticamente torna a sociedade irrelevante para a qualidade de vida das pessoas, para a dignidade da vida coletiva.

 Principalmente, porque se uma classe social não têm qualidade de vida a culpa é dela ou do destino. É por isso que em tempos de extrema polarização da riqueza, prospera de uma maneira inaudita, a teologia da prosperidade, entre gente não próspera. Por quê? Porque o neoliberalismo global nos diz, como disse, entre 2011 e 2015, em Portugal, quando tivemos um governo do mesmo tipo que tendes agora, governo da mesma família global que: Precisamos de austeridade, da privatização da previdência, de cortes salariais, de cortes nos direitos, da destruição da universidade pública e do serviço de saúde, etc... Perpassa um pensamento, neste momento, baseado na ideia de que as classes médias, não só as classes populares, mas também as classes médias vivem acima de suas possibilidades – um grande chavão em Portugal, durante 4 anos. “A gente vivia acima de nossas possibilidades”. Por isso, então, é preciso fazer sacrifícios. Quem utiliza bem a ideia de sacrifício? A teologia. A teologia tem como centralidade o sacrifício. É por isso
que essas religiões conservadoras, a evangélica, sobretudo, e outras pedem obviamente o sacrifício das pessoas. A segunda nota que eu vos queria dar para mostrar a complexidade do nosso tempo é que temos que fazer o caminho inverso o qual propôs Gramsci, Gramsci que foi muito importante como intelectual marxista. O maior problema nas sociedades é que as ideias dominantes têm que ser dominantes também dentro das classes dominadas, senão há muita violência.
Em nossas sociedades as classes dominadas aceitam as ideias dominantes. Aliás, hoje nós vemos isso por todo lado. A perda do social está a permitir exatamente que a hegemonia das classes dominantes seja cada vez maior.

É por isso que as vítimas se viram contra as vítimas. Por essa razão é que as vítimas votam, elegem seus próprios opressores. É a má consciência que se cria através da segunda opção de votos das classes mais baixas desse país: a primeira é Lula e a segunda é Bolsonaro.
Essa falsa consciência cria exatamente essa situação. Temos que fazer o caminho inverso de Gramsci. Ele aponta que não nos devemos centrar somente na dominação, mas também na hegemonia. Instava a que se entendesse a hegemonia. Penso que agora temos que eleger a hegemonia prioritariamente à dominação. O inimigo é cada vez mais invisível.

A dominação não está apenas na brutalidade policial, está nas páginas da TV, por vezes em nossas escolas, está nas nossas ruas, está nos nossos organismos, está nos nossos juízes, no nosso poder judiciário... É exatamente isso que vivemos hoje, de maneira muito intensa e por isso penso que agora nós temos que voltar e olhar muito bem quem nos domina. Tão bem demonstrou o José Vicente, que vivemos não apenas em sociedades capitalistas, mas também colonialistas e sexistas.

É por isso que muita gente se surpreende, porque hoje o racismo voltou  com tanta força. Eu vivo parte do ano nos Estados Unidos. Nunca houve tanto racismo como hoje, nos Estados Unidos. É porque o modo de desenvolvimento capitalista exige a continuidade do colonialismo. É para nós não pensarmos que as independências deram fim ao colonialismo. Terminou o colonialismo histórico, mas continuaram outras formas.

Neste momento essa sociedade está a ser vítima de uma interferência imperialista que eu tenho certeza que não é de conhecimento total. Até que ponto ela é capaz, nesse momento, de varrer da memória dos brasileiros tudo aquilo que foi feito nos últimos 13 anos no sentido de inclusividade. A minha última nota, reforçando que me sinto orgulhoso de a partir de agora ser professor dessa casa, se posso contribuir com meu trabalho através das minhas investigações, pela minha pesquisa. Sou atualmente diretor de um centro científico com mais de 800 pessoas e com 470 jovens doutorandos. Nós só temos alunos de doutorado de muitos países e inclusive, obviamente do Brasil. Como é que nós podemos ajudar exatamente para avançar na compreensão dessa situação em que a gente se encontra e que eu resumo da seguinte forma.


O grande filósofo do século XVII, meu filósofo preferido, Spinoza dizia que, como eu tenho, muitas vezes, me referido: Os dois sentimentos ou afetos fundamentais do ser humano são o medo e a esperança. Deve existir um certo equilíbrio entre os dois, entre o medo e a esperança. Quando não há esperança as coisas são difíceis. Sem esperança não há possibilidades de construir segurança. Em que sociedade estamos de novo a entrar? Estamos a entrar em sociedades, que em muitos países, majoritárias massas enormes da população vivem com medo, sem esperança. E onde, um pequeno grupo, econômica e politicamente muito forte, só vive com esperança, sem medo. Deixou de ter medo que os seus privilégios sejam atacados e destruídos. Deixou de ter medo de ser confrontado e é arrogante. Precisamente, porque só tem esperança sem medo. Enquanto a grande massa das populações vive na espera sem esperança e com medo. Um medo sem esperança leva à resignação.

A desigualdade e a injustiça social por maior que sejam nunca conduziram à resistência sem uma ideia alternativa e uma ideia de esperança. Sem esperança não há possibilidade de construirmos uma sociedade melhor. Portanto, qual é nossa missão democrática? Construir algum medo para aqueles que não têm nenhum. Construir muitas esperanças para aqueles que não têm esperança nenhuma. Eu penso que o trabalho crítico do século XXI tem que ser muito inovador. Não pode ser com as categorias do século XX. Tem que ser muito criativo, muito intercultural. Tem que buscar outras culturas, indígenas, quilombolas, negras, da África, da Ásia. O mundo eurocêntrico no início do século XX era 90% do mundo, hoje é 4% em termos gráficos. Temos que aprender com o mundo e por isso que o projeto que falava o meu querido amigo José Vicente é chamado Holístico.

 Exatamente, a Europa deve aprender com as experiências do outro mundo. O mundo não europeu que foi sempre desprezado por ser menos desenvolvido, por ser “primitivo” e, portanto do qual nada se tem a aprender. Penso que é aí que nós devemos situar a restituição da esperança e a criação de algum medo. Porque se não fizermos isso, vamos ter realimente um tempo muito incerto que passará a ser um tempo distópico. De certa maneira já é distópico. Porque exatamente tem como utopia que não há alternativa para a situação na qual a gente se encontra. O fato de que 8 homens mais ricos do mundo tem tanta riqueza quanto a metade mais pobre da humanidade é um fato e acabou. É um fato neutro, não eticamente repugnante.

Temos que construir a partir daí uma alternativa. Eu estou disposto na minha qualidade agora de professor da UFRGS de contribuir com meus trabalhos, com a minha militância para que possamos seguir por essa via, a qual na verdade é a única que pode levar a uma sociedade mais justa, mais equilibrada. Mais equilibrada com a terra mãe, com a natureza e é isso que eu me proponho fazer, já que esta universidade, que é uma das mais importantes deste país e da América Latina teve a generosidade de me conceder o grau de doutor honoris causa.
Enviado por: "Carlos R. S. Moreira Beto" 

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