Professores da Universidade de Manaus falam sobre as alagações do Madeira.

Publicamos texto de Alfredo Wagner Berno de Almeida - Coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, Gláucia Maria Quintino Baraúna - Pesquisadora do Projeto Nova Cartografia e Jordeanes do Nascimento Araújo - Coordenador Regional PNCSA/Humaitá   Projeto Nova Cartografia Social, da Universidade de Manaus sobre as alagações do Rio Madeira. A resposta do PNCSA foi dada após pedido de colaboração no Painel de Especialistas sobre os Prejuízos da Cheia do Madeira.


  • "Os conflitos sócio-ambientais no Sul do Amazonas, no Acre e em Rondônia passam a ser discutidos também sobre este prisma dos “desastres ambientais” cognominados pela imprensa periódica como “cheia” ou “inundação”. Tudo leva a crer que há uma tentativa de classificar como fenômeno natural o que resulta de uma intervenção econômica de empreendimentos, que não efetuaram estudos adequados relativos aos impactos." 

Máquinas na BR 364 realizando reparos na área dos reservatórios das usinas. foto cpt ro


Manaus, 02 de abril de 2014

À Direção da Universidade Federal de Rondônia – Porto Velho (RO)

Consoante solicitação, concernente ao “Termo de Referencia-Estudo sobre a cheia no Rio Madeira e os efeitos dos reservatórios e remansos das UHE’s Jirau e Santo Antonio”, vimos informar que o mesmo, tal como elaborado pelo MMA-IBAMA em 26 de março de 2014, não contém qualquer menção à análise de efeitos sociais relativos às comunidades locais, aos povos indígenas ou aos fatores étnicos e a população dos Municípios compreendidos na área afetada pela cheia. Esta tríplice elisão deixa entrever que os instrumentos analíticos próprios da ciência antropológica não foram incorporados no referido TR o que de antemão revela uma dificuldade institucional de compreensão sistemática e abrangente do fenômeno. Sublinhe- se que esta denominada “cheia histórica” do Rio Madeira deve ser repensada em sua especificidade. Primeiro porque o Serviço Geológico do Brasil, da Companhia de Recursos e Produção Mineral (CPRM), afirma, em 01 de abril de 2014, que no que tange ao Rio Negro não há risco de uma “cheia recorde”, no entanto o nível do Rio Madeira é o que mais preocupa os técnicos, porquanto começa a afetar também os Municípios do Baixo Amazonas (Parintins, Barreirinhas, Maués etc.) numa cheia absolutamente recorde. Neste contexto, os atingidos pelas barragens passam a ser designados pela classificação de “desabrigados” e o que era um problema a ser previsto pelos empreendedores passa a ser um problema dos poderes públicos.

A partir desta ressalva inicial e considerando que, no âmbito do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, já temos um repertório de dados levantados em trabalhos de campo na região afetada, procederemos, cingindo- se a nossos critérios de competência e saber, a algumas observações que nos pareceram pertinentes, quanto ao mencionado TR. Antes mesmo de qualquer proposição importa destacar que os conflitos sócio-ambientais em Rondônia, no Acre e no Sul do Amazonas também se agravaram neste início de inverno amazônico, com as cheias. Haja vista que em Humaitá (AM) a Comunidade do Paraizinho - onde foi realizado o primeiro mapeamento, que gerou o fascículo nº 01 Fundo Amazônia-BNDES/Universidade do Estado do Amazonas do “Projeto Mapeamento Social como instrumento de Gestão Territorial contra o Desmatamento e a Devastação”- encontra-se debaixo d’água há um mês. Na área permanece apenas uma família, a do Sr. Mendonça, morando numa embarcação. Casas e áreas de plantio, designadas “roças” e áreas de criação de animais, bem como toda a comunidade estão sob inundação. As famílias atingidas se deslocaram, de maneira desesperada, para outras áreas de terra-

firme. As águas da cheia do Madeira não descem, todavia, e ainda estamos no meio do “inverno amazônico” e vastas áreas de floresta de terra-firme estão completamente inundadas. Esta ordem de problemas cotidianos continua dificultando, de diferentes maneiras, as comunicações entre os núcleos.

As explicações sobre este fenômeno ou “desastre ambiental” são divergentes: enquanto uns afirmam tratar-se de problemas climáticos ou naturais, atribuindo tudo a alterações no regime pluviométrico andino, outros asseguram que se trata de impactos não previstos a partir da construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio. Decisões judiciais têm sentenciado os consórcios a se responsabilizarem pelos efeitos provocados sobre a vida material de famílias ribeirinhas, ou seja, tratar-se-ia de uma “tragédia ambiental” que faz par com a aceleração do problema das denominadas “terras caídas”, em todo o Baixo Madeira, de Porto Velho a Nova Olinda do Norte. As margens do Rio Madeira tornam-se cada vez mais difíceis de serem delineadas, fugindo do domínio do saber tradicional das comunidades ribeirinhas. A judicialização deste conflito indica também o exame dos efeitos sobre a cobertura vegetal, isto é, ligados diretamente à devastação com danos similares àqueles provocados pelos desmatamentos, cujos efeitos são sublinhados pelos membros das Comunidades do Paraizinho, Puruzinho, Paraiso Grande, São Miguel, Botos e Moanense. Os conflitos sócio-ambientais no Sul do Amazonas, no Acre e em Rondônia passam a ser discutidos também sobre este prisma dos “desastres ambientais” cognominados pela imprensa periódica como “cheia” ou “inundação”. Tudo leva a crer que há uma tentativa de classificar como fenômeno natural o que resulta de uma intervenção econômica de empreendimentos, que não efetuaram estudos adequados relativos aos impactos. (continua)

Para uma reflexão geral e resumida gostaríamos de asseverar que esta passagem de 2013 para 2014 apresentou singularidades, combinando o improvável, qual seja os efeitos consecutivos de desmatamentos acelerados com cheias jamais vistas, pelo menos no que tange à bacia do Madeira. Vale lembrar que em novembro de 2013 o MMA informou publicamente que, após quatro anos consecutivos de queda, o desmatamento na Amazônia Legal voltou a subir, com sinais preocupantes. Entre julho de 2012 e agosto de 2013 (ou seja, de “verão amazônico” a “verão amazônico”) foram identificados 5.843 quilômetros de mata derrubada, isto é, 28% a mais do que havia sido registrado no período anterior. O INPE teria identificado também um aumento na extensão de áreas em que ocorreram as derrubadas, destacando principalmente o estado do Pará, onde foram registrados inúmeros desmatamentos acima de 1.000ha, um tipo de ocorrência que até então era apresentado como estando em constante queda. Ainda não foram concluídos os estudos para apreciação dos fatores que geraram tal aumento, embora já tenham sido indicados nos pronunciamentos oficiais, em menor ou maior grau, os seguintes: “grilagem”, “crime organizado”, “garimpo” e “efeitos das alterações no Código Florestal”. Tais dados foram divulgados num momento, segunda semana de novembro de 2013, em que se registra um homicídio em ocorrência de conflito em unidade de conservação (Floresta Nacional Bom Sucesso) de Rondônia. Agrava este quadro a elevação do nível das águas no 

Rio Madeira, a construção de estrada (“ramal”) em área de floresta nos Municípios de Tarauacá e Jordão (Acre), interligando a cidade de Jordão à comunidade seringal Novo Porto, no Rio Muru, sem qualquer consulta às comunidades indígenas, ao ICMBIO e à FUNAI, o aumento de “crimes ambientais” ao longo da rodovia Manoel Urbano AM-070 (Municípios de Iranduba, Novo Airão e Manacapuru-AM). Em suma, pode-se salientar que este “último verão” significou um avanço de interesses favoráveis ao desmatamento, do mesmo modo que o presente “inverno” está significando um avanço da devastação. Ambas as tendências revelam conflitos e interesses contrários às iniciativas de preservação e aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais previstos constitucionalmente. Em nome de supostas “vantagens econômicas” e de uma discutível noção de “progresso” foram intensificadas ações de desmatamento e de obstrução à regularização fundiária de unidades de conservação. A cheia está sendo o elemento deflagrador destes desastres ambientais, nitidamente provocados. Em decorrência tem-se que promover um criterioso mapeamento dos locais atingidos, das datas, das famílias e comunidades atingidas, bem como a descrição das atividades obstruídas e suas implicações, os instrumentos de constrangimento e seus efeitos. Certamente que tal descrição poderá contribuir para que se engendrem ações e iniciativas eficazes para coibir as distorções provocadas e para superá-las consoante ampla discussão com as próprias famílias atingidas. Uma consulta ampla nos termos da Convenção 169 da OIT torna-se um instrumento jurídico essencial. Mediante esta reflexão gostaríamos de convidá-los a apreciar as proposições que se seguem. 

i) A noção operacional de “área de influencia”, conforme havíamos sublinhado na publicação “Conflitos Sociais no Complexo Madeira” 1 revela-se precária, insuficiente e por demais limitada e teria que ser necessariamente revista no momento atual, a partir dos efeitos catastróficos da própria cheia. Em outras palavras estamos diante de fatos consumados, quanto ao raio de ação dos impactos, seja à jusante das barragens ou à montante.

ii) Quanto às denominadas oficialmente “áreas de influencia direta- AID” gostaríamos de pontuar o que se segue: No que diz respeito aos agentes sociais que teriam direito ao “reassentamento, indenização e outras formas de compensação” em novas localidades,devido ao “impacto” das obras hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, foram classificadas apenas como “Áreas de Influencia Direta – AID”,pelos consórcios empreendedores Santo Antonio Energia e Energia Sustentável do Brasil, aquelas localidades pré-definidas em seus estudos. Tais áreas 

1 ALMEIDA, Alfredo W. B. (Orgs.). Conflitos Sociais no Complexo Madeira. Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/UEA Edições, 2009. 

corresponderam àquelas onde foram erguidos os canteiros de obras; a abertura de vias de acesso para a construção, para a criação de Área de Proteção Permanente – APP, e àquelas onde se formaram os reservatórios (PBA, 2008, p, 02 & Plano de Trabalho/ESBR, 2009, p. 03).

iii) Em vista da curta delimitação da área considerada afetada e que agora, mediante a cheia, ultrapassa o esperado, submete-se à apreciação dos órgãos públicos referenciados que sejam realizados estudos aprofundados sobre os efeitos provocados desde a construção das obras, que não contemplaram/reconheceram todos os atingidos durante a implantação, e somados recentemente pelos atingidos a partir dos desastres ambientais e sociais provocados, pela cheia e a partir do barramento do Rio Madeira.

a) Considerar as áreas de confluência do Rio Madeira que foram inundadas e correspondem às fronteiras internacionais, atingindo a Bolívia e o Peru, bem como os Estados do Amazonas e do Acre e áreas ribeirinhas dos rios: Mamoré, Guaporé, Pacaás Novos e Ouro Preto, dentre outros. b) Considerar os municípios do Estado de Rondônia: Rolim de Moura, Nova Mamoré, Guajará-Mirim, Jaru, Pimenta Bueno, Costa Marques, Cacoal, Ji-Paraná, Candeias do Jamari e Porto Velho. c) Considerar os municípios do Estado do Amazonas e as localidades rurais de: Humaitá, Apuí, Manicoré, Borba, Nova Olinda do Norte, Novo Aripuanã. Considerar as calhas dos rios: Juruá e Purus, que se encontram sob fortes indícios de estarem sofrendo os impactos dessas hidrelétricas. d) Considerar as localidades rurais e distritos do Estado de Rondônia: São Sebastião, São Carlos, Calama, Brasileira, Nazaré, Jaci-Paraná, Extrema, Mutum, Vista Alegre do Abunã, Ilha Nova, Ilha da Assunção, Ressaca, Firmeza, Fortaleza do Abunã e Abunã. e) Considerar as localidades rurais ao longo da Transamazônica e as terras indígenas “Tenharim, Jiahui, Parintintim e Pirahã” no Estado do Amazonas, bem como todas aquelas do Estado de Rondônia, e que foram isoladas pela cheia que atinge as vias de acesso, as áreas de extração e cultivo. f) Considerar, sob este aspecto, as terras indígenas no Estado de Rondônia, que não foram identificadas como atingidas. g) Considerar as perdas e a paralisação de atividades produtivas nas áreas urbanas e rurais, sobretudo aquelas onde sobressaem unidades de trabalho familiar, assentamentos e projetos agroextrativistas.

h) Um dos aspectos mais graves refere-se à total paralisação das atividades escolares, com o fechamento das unidades de ensino. Em Porto Velho vinte e cinco (25) escolas estão paralisadas. No município de Humaitá no Amazonas 98 escolas da rede municipal e 14 da rede estadual encontram-se com suas atividades suspensas. Ademais há 

muitas escolas, igrejas e associações voluntárias da sociedade civil que estão também “fechadas” e cuja paralisação atém-se ao fato de terem se tornado abrigo para as famílias atingidas pelas cheias e inundações. 

i) Outro efeito refere-se à interrupção do tráfego em rodovias federais que ligam o Acre a Rondônia e o Amazonas a Rondônia. Estão obstruídas vias terrestres que ligam a região atingida às demais unidades da federação. Os efeitos à montante têm sido rejeitados também em regiões fronteiriças e em países limítrofes com consequências ainda não estimadas. Há inúmeros povoados, além das linhas de fronteira, que também se encontram submersos ou sob as aguas ha mais de um mês e cujas implicações em futuro próximo são imprevisíveis. Cabe indagar como foram realizados os estudos de viabilidade, como foram discutidos os cenários da iminência de catástrofes? 

Mediante fatos e observações desta ordem é que nos dispomos a discutir de maneira detida e acurada sobre os desastres ambientais e sociais provocados pelas intervenções de anos recentes, vinculadas sobretudo às chamadas “obras de infraestrutura”, que parecem não terem conseguido avaliar de maneira eficaz os seus efeitos.

Cumprimentando-o cordialmente nos colocamos à disposição para discutir os efeitos mencionados, certamente em consonância com nossa agenda que se encontra bastante adensada neste “inverno” ou nesta estação chuvosa.

Alfredo Wagner Berno de Almeida - Coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia

Gláucia Maria Quintino Baraúna - Pesquisadora do Projeto Nova Cartografia 

Jordeanes do Nascimento Araújo - Coordenador Regional PNCSA/Humaitá 

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